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À Deriva

por Luís Marcelino, em 20.02.23

            Não vejo nada.

            As nuvens cobrem as estrelas, e a lua, envergonhada, não quis ser a única luz no céu permitindo que reine a escuridão. À minha volta um mantra incessante de água agitada, talvez com medo da noite, cobre-me a audição, não ouço nada senão água. A maresia entra-me pelo nariz, fria e pesada. Custa-me respirar. A água que em rebuliço embate na barcaça e encontra o caminho, vá-se lá saber como no meio deste bréu, para os meus lábios, deixa-me o paladar salgado. É assim que sinto a tempestade. Escura, ensurdecedora, irrespirável, intensa. Tenho sede. Fome também, tanta que o meu estômago parece estar a digerir-se a si próprio. E tenho medo, um medo silencioso. Um medo que se sente quando se está sozinho. Quando a humanidade está a uma distância impossível. Sinto-me sozinho no mundo, como se fosse o último ser humano. Claro que algures, alguém rodeado de pessoas, comida e bebida sorri alheio ao sofrimento do mundo, alheio a tudo o que o recolhe daquela alegria. No entanto, a mim parece-me que o mundo sou só eu. Sempre foi assim, mesmo sem estar à deriva no meio do oceano.

            Atirei-me ao mar há alguns dias, eu e uma barcaça, os dois numa aventura impossível. Sentia-me afundar em terra. No mar a ondulação relembra-me que flutuo. Que apesar da imensidão de um oceano inteiro e da indiferença com que as vagas passam por baixo destas quatro tábuas, vou resistindo, sobrevivendo. Sinto-me homem, sinto-me animal. Em sociedade sou um número, sou braços e pernas e força, sou trabalho e miséria. Sou um número infeliz que esconde essa infelicidade com bens materiais. Foi-me incutido este modo de vida em que quanto mais coisas possuo, mais sucesso tenho. Para isso tenho de trabalhar. E trabalho a vida inteira a correr atrás dos meus sonhos materiais. É o que eles querem, é para isso que nasci. Sirvo para trabalhar. E trabalho para alimentar o meu próprio consumismo. Não quero mais isso, prefiro a deriva nesta imensidão, a tempestade, a fome, a sede. Prefiro sentir-me vivo a cada momento que passa.

            Tenho outros sonhos. Sonhos que fogem ao conceito aspiracional que se concebe da palavra sonho. Tenho sonhos sonhados, isto é, durante o sono. Um deles repete-se sempre que o cansaço leva a melhor. Há uma ilha imaginária no meio do oceano, escapa-me de qual deles. Pouco sei sobre esta ilha a não ser que nunca foi descoberta. Espera que a encontrem, mas parece que nem toda a gente a pode ver. É um sonho, uma impossibilidade que o meu cérebro fabricou. Mas há devaneios que valem a pena perseguir. Chamem-me maluco, demente, louco. Atirei-me ao mar porque quero encontrar esta ilha. Morrerei. Falhar-me-á o corpo antes de a encontrar, mas os sonhos têm dessas coisas.

            Morrer a trabalhar, ou morrer flutuando na imensidão dos sonhos?

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Dez mil anos de vida

por Luís Marcelino, em 07.08.21
Muito sofri eu nesta vida infindavelmente longa. Muita gente perdida, esquecida, insignificante para os anais da história. Para a história da humanidade, não a minha. A história que é a minha, demasiado longa para ser contada por palavras, está cheia dessas pessoas, e outras, mais importantes.

Já vivi tempo suficiente para poder afirmar com certeza que afinal, ao contrário do que dizem, sempre existem pessoas insubstituíveis. Conheci muitas. Morreram todas. Toda a gente morre, também a mim me há-de esperar esse desfecho. Vivo há tempo suficiente para não temer o fim. Há coisas piores que a morte, não morrer é uma delas. Sei do que falo. Não morrer significa solidão, significa uma procura incessante por substitutos do insubstituível. A morte é um dom, invejo quem o possui, invejo toda a gente. Já a imortalidade, essa utopia que se procura desde sempre, não passa de uma maldição.

Tenho dez mil anos, mais mil menos mil. É difícil ter a certeza, não sou como uma dessas personagens literárias imortais que contaram todos os anos que viveram. Eu perdi-lhes a conta. Não sou uma personagem literária. Sou um ser real se é que realidade é sinónimo de existência. Eu existo… vou existindo. Perdurando. Vendo todos morrerem: pessoas, gerações, países, culturas, religiões. Vi de tudo quando na realidade não vi nada. Sou um ser ancestral que se transporta pelo mundo como se não lhe pertencesse. Há cinco mil anos, possuíndo a sabedoria que possuo hoje seria considerado um deus. Ou um sábio talvez. Um bruxo, um feiticeiro. Um profeta. Um maluco.

Não sou nenhuma dessas coisas, sou um humano curioso. Um velho de barbas sentado numa antiga poltrona que lê, lê muito. Muitas coisas vivi eu através dos livros, das palavras. Vivi o antigo Egito, vivi a Grécia antiga, vivi Roma. Também testemunhei a idade média e moderna. Conheci Maomé, D. Afonso Henriques, Dante, Camões, Cristóvão Colombo, Marie Currie e o marido, Marx, Engels, Hitler. Conheci a Madre Teresa de Calcutá, Einstein, Pablo Picasso. Conheci tudo e toda a gente que o meu tempo e os meus livros me permitiram. Conheci outros, alguns fictícios, alguns anónimos. Mas conheci milhares de pessoas nestes milhares de anos.

Vivi mais do que o meu tempo de vida de permitiria. De forma diferente, é verdade, resumida nas 400 páginas de um qualquer livro sobre um qualquer assunto. Vivi pelas palavras de escritores, historiadores, biógrafos e cronistas. E viverei muito mais, com as minhas barbas sentado nesta poltrona e os meus dez mil anos de vida que cegarão quando chegar o fim. E que venha ele, ja não tenho idade para o temer.

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Clichés

por Luís Marcelino, em 30.04.21
Passeio na praia. Areia nos pés, entre os dedos, entre as unhas e a carne. As pegadas vão ficando para trás, são a lembrança de que por ali passei. Não as há de mais ninguém, estou sozinho. Gosto de passear sozinho na areia da praia, não naquela solta que é cansativa. Nesta aqui à beira mar que a água compactou. Não venho aqui para me cansar. Venho meditar. A água produz música para os meus ouvidos. Serve-me de mantra. Ajuda-me a pensar. E a não pensar. Enquanto ando não foco em nada. O olhar vê mas não repara. O olfato cheira mas não sente. A audição perde-se nas ondas e no som crocante dos meus pés que se enterram na areia molhada. De vez em quando um lençol transparente, fino como seda, estende-se e molha-me até ao tornozelo. É como uma massagem. Melhor.

O Sol vai caindo. Despenha-se no mar. Estou a viver o cliché do pôr do Sol, não foi por isso que vim. Calhou. Apeteceu-me e vim. Foi um acaso o Sol decidir deitar-se agora. Calhou bem. A esta hora o areal está vazio. No paredão os fotógrafos de fim de tarde contemplam o espetáculo através dos seus ecrãs. O humano esqueceu-se de como se aprecia o espetáculo da vida. Fazê-mo-lo sempre através de uma câmara. Nós, a câmara e aquilo que achamos belo. Não apreciamos ao vivo, in loco, mas em casa quando publicamos no Instagram. O pôr do Sol estava bonito hoje, pensamos então.

Um brilho encandeante puxa-me destes pensamentos. Uma garrafa de vidro repousa a dez passos de distância. É verde, suja, parece velha. Tem uma rolha de cortiça, gasta. Talvez seja mais velha que a garrafa. As pessoas têm o estranho hábito de tapar garrafas novas com rolhas velhas. Esta tem algo enrolado lá dentro. Um papel. Encontrei uma mensagem numa garrafa. Hoje é dia de clichés. Devo abrir? Decido que sim. Não deve ter destinatário, se tiver sou eu que a encontrei.

Saco a rolha com os dentes, estava bem presa. Tiro o papel. Diz:

 

“Salva-te”

 

Só. Creio que é uma mensagem tão válida como outra qualquer. O que se escreve numa mensagem náufraga? “Salvem-me”? Esta dizia “Salva-te”. Afinal tinha destinatário. Era eu. Porque fui eu quem a encontrou. Adequa-se. Preciso desta mensagem, do seu significado. Preciso de me salvar. Precisamos todos de nos salvar.

Meto a nota no bolso. A garrafa também vai comigo. Lembro-me que talvez a devesse devolver ao mar para que possa salvar mais alguém. Um dia, quando a sua função for cumprida prometo que a devolvo. Para já fica comigo. O Sol vai dormir, deita-se cedo. Eu vou para casa. Talvez amanhã haja Sol outra vez.

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Visão do Assassino - I

por Luís Marcelino, em 13.09.17

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Era segunda de manhã em pleno janeiro, lembro-me perfeitamente, estava um frio de rachar, céu limpo, uma manhã linda. Pela aldeia corria já a notícia de que teria sido encontrado um cadáver no campo perto do açude do rio Lis, na zona da Carreira.

Pouco se sabia, entre boatos e mais boatos, mais, ou menos distantes da realidade, havia quem dissesse que a pessoa tinha caí­do ao rio, havia quem dissesse que lhe tinha dado algum ataque. Quem a descobriu não teria nenhuma dessas opiniões. Quem a descobriu precisou de acompanhamento psicológico durante meses. 

Chama-se Luz, é uma senhora nos seus 75 anos de idade que costuma passar por aquele sí­tio todas as manhãs bem cedo, acorda todos os dias ás seis da manhã, toma o pequeno-almoço: pão fresco, deixado de madrugada pela padeira da "Padaria Nova", com uma caneca bem cheia de leite com café. Por volta das sete menos um quarto no fim de ter alimentado toda a criação, sai quase todos os dias, à  exceção dos dias chuvosos, para dar sempre o mesmo giro. Sai de casa em Carvide em direção á Fonte Riba onde há um caminho que desce para os campos do Lis, ela desce-o com uma facilidade surpreendente para uma mulher daquela idade, lá em baixo segue por um carreiro que a leva ao longo de um coletor* até á ponte de S. Lourenço, antes atravessava-a, agora tinham contruído um caminho mesmo à beira do rio, esse caminho passa mesmo ao lado do açude onde, num desses dias, encontrou uma pessoa morta. Que choque, tinha sido brutalmente assassinada.

Falei com ela uns dias depois do episódio, ainda estava em choque, incapaz de ter um discurso completamente coerente, algumas letras perdiam-se no meio das palavras o que tornava a tarefa de a perceber mais difícil. Mas eu tinha de ter uma conversa com ela, esperava por esse momento desde domingo à noite.

Pouco me conseguiu descrever, e eu pouco consegui perceber. Mas eu já sabia como estava o cadáver, sabia exatamente onde estava, como estava exposto, quais as mazelas e onde as tinha, também sabia o que tinha sido usado para provocar aqueles ferimentos. E quem a tinha matado, e enquanto a polícia a tentava identificar, eu sabia a sua identidade. Fui eu que a coloquei daquela maneira, fui eu que espalhei as pétalas de rosa em toda a sua volta, fui eu que a deitei delicada e nua, apagada de vida em cima daquela cama vermelha. Toda a sua beleza, o seu cabelo solto, as suas curvas despidas, os seus ferimentos magní­ficos à vista de todos, tinha-lhe lavado o corpo para tirar o sangue ressequido, para o cabelo voltar ao seu dourado perfeito, brilhante ao luar. Deixei-a com a pele limpa e esburacada, uma obra de arte, branco sobre vermelho vivo num contraste perfeito. Agora era uma menina indefesa. O nome dela era Nicole, foi a minha primeira tela, o primeiro objeto das minhas ideias. 

 

*curso de água utilizado para o regadío dos campos agrícolas

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Visão do Assassino - II

por Luís Marcelino, em 12.09.17

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Prendi-a atando os seus pulsos com duas cordas suficientemente compridas para as conseguir passar por cima das vigas de madeira descobertas que seguravam o teto. Ela ficou de joelhos com os braços esticados no ar, as mãos estavam descaídas para a frente tal como a cabeça por ainda se encontrar inconsciente. Coloquei-lhe um farrapo na boca e esperei que acordasse. Quando abriu os olhos e se apercebeu o que tinha acontecido e do que estava a acontecer quis mandar um berro, o farrapo impediu-a e ela desfez-se em lágrimas. Já sentia o medo, como que um odor a pairar no ar unindo-se às suas feições de desespero total.

Tentei acalma-la, nada do que tinha para dizer a poderia acalmar.

Disse-lhe que voltaria mais tarde, fui para casa, tomei banho e jantei, pensei levar-lhe o resto mas sabia que não ia ser necessário. Quando voltei ali estava ela, com os pulsos em ferida, a cara lavada em lágrimas, reparei que tinha sangue na boca, assumi que tivesse tentado roer as cordas e tenha cortado os lábios ou a gengiva no processo.

- Querida voltei!

Ela respondeu-me algo que o farrapo que lhe colocara na boca tornava impercetível, eu não precisava de palavras. Queria viver o sonho que tinha tido desde a primeira vez que a vi, nesse sonho não havia palavras, apenas gritos e gemidos de dor. Fiz-lhe coisas inimagináveis, coisas que fariam a maioria das pessoas desmaiar, mas eu, eu estava a gostar. A certa altura pensei "quero ouvir um grito", o pano impedia-a de soltar um berro a plenos pulmões, eu queria ouvir um. "Anda tira-lhe o pano, só um bocadinho". Assim que o fiz ela gritou por socorro tão alto que os meus ouvidos ficaram a zunir. Já era de noite, bem tarde, o silêncio era quase absoluto na rua, ouviam-se grilos e rãs e nada mais. A aldeia mais próxima era Carvide, mas àquela hora ninguém estava na rua, os seus gritos seriam inúteis, e mesmo que alguém a conseguisse ouvir, para além de a palavra "socorro" ser quase impossível de perceber distorcida pelo eco, a nossa localização era demasiado remota para a descobrirem a tempo. De qualquer das maneiras já estava a acabar. Voltei a tapar-lhe a boca, já tinha o que queria. Terminei-lhe o sofrimento após cerca de dez minutos, não a queria fazer sofrer mais tempo do que era necessário.

Era hora de preparar a fase final, sentia-me obrigado a fazer jus à sua beleza, queria aproveitar todo o seu potencial e exponenciá-lo ao máximo. Ela merecia-o. Quando a encontrassem, aliás quando a senhora Luz a encontrasse, sim foi a minha escolhida, apenas por saber que ela passava nos mesmos sítios todos os dias, era certo que ela não ia passar muito tempo sozinha, ia ser encontrada poucas horas depois de a ter colocado ao lado do açude.

Tirei-a da cabana. O seu peso morto não representava um desafio, ela era leve, magrinha. Com o seu corpo ao ombro transportei-a até ao carro, sempre delicadamente, tinha tempo mais que suficiente pelo que podia fazer tudo com calma. Conduzi até uma margem do rio, àquela hora a maré estava baixa tornando o Lis num lamaçal com umas poças aqui e ali, umas mais profundas que outras. Aproveitei uma delas para a mergulhar, tinha de a lavar, não apenas para apagar possíveis provas como impressões digitais ou quaisquer outros indícios que pudessem trazer a investigação à porta de minha casa, mas também para a deixar limpa, como a encontrei. Não conseguiria tirar partido da sua beleza se tivesse sangue ressequido em todo o corpo. Limpei-a bem, todas as partes do corpo, todos os cantos e recantos, foquei-me no cabelo, era das minhas partes preferidas nela. Aquela poça já estava vermelha de todo o sangue que tinha saído, não estava preocupado, a maré ia subir, o açude ia deixar a água transbordar para jusante, aquele sangue ia ser levado para o mar e com ele todas as provas.

Havia uma estufa perto da Sismaria, era uma estufa utilizada para a floricultura, passei por lá, não me preocupei com ser encontrado, às três da manhã não há ninguém naquela zona. Escolhi as rosas vermelhas, pela sua beleza e pelo seu significado. As rosas vermelhas significam amor, paixão, respeito e admiração. Para além disso iam fazer um contraste quase perfeito com o seu corpo branco. Cortei algumas, apenas as que achava suficientes para fazer um tapete de rosas. Levei-as para o açude, espalhei-as num círculo e deitei-a em cima delas, não estava vento, isso assegurava-me que as pétalas não iam a lado nenhum. Coloquei o seu braço esquerdo sobre os seus peitos de forma a não ficarem à mostra e a sua mão direita na zona genital. Não queria desrespeitá-la depois da morte. Coloquei os seus lindos cabelos de forma natural como se ela própria se tivesse deitado ali. Admirei-a uns minutos e fui-me embora.

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Visão do Assassino - III

por Luís Marcelino, em 11.09.17

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"A PJ quer antes de mais apresentar as condolências à famí­lia da vítima brutalmente assassinada. As investigações abriram esta manhã com a denúncia de um homicí­dio no lugar de Carreira, pertencente ao conselho que Leiria.

A GNR de Monte Real foi a primeira a chegar ao local para assegurar que a área do crime não era violada. Após a confirmação da denúncia por parte dos militares da GNR presentes no local foi enviada uma equipa forense da PJ para tomar conta da ocorrência.

O estado do corpo da ví­tima indica que terá sido torturada com diversos utensí­lios e a causa da morte, conforme apurado pela equipa forense no local terá sido um corte no pescoço que a fez perder demasiado sangue. Não há muito mais para dizer acerca da investigação, a não ser que não há ainda indícios que apontem para nenhum suspeito, esperamos que os testes forenses nos deem algumas pistas. Também podemos dizer que tudo indica que o crime não terá sido cometido no sí­tio onde o corpo da jovem foi encontrado.

As investigações prosseguem, não tenho mais declarações a fazer neste momento, obrigado."

 

Ouvi na TV atentamente a conferência de imprensa, fiquei um pouco surpreendido, não é comum a polícia dar uma conferência de imprensa após um homicidio isolado, mas a brutalidade com que foi executado justifica que o tenham feito, para traquilizar a população.

Ao que parece o cuidado que tive compensou, pelo menos por agora não havia nada que apontasse para mim. O que mais receava eram os testes de laboratório, se não a tivesse lavado bem em alguma parte poderiam descobrir impressões digitais que me incriminassem, ou detritos que apontassem para o sí­tio onde tinha cometido o crime. Quanto aos utensí­lios usei chaves de fendas dos chineses, facas da Icel, enfim, só coisas comuns do dia a dia que sabia que toda a gente usava. Até agora a única prova que me incriminaria era a foto que tirei ao corpo já deitado na cama vermelha de rosas, e estava na minha posse, nunca ia ser revelada nem partilhada com ninguém.

 

Na aldeia andava tudo em sobressalto, nunca tinha acontecido nada assim, estamos a falar de uma zona calma onde passa uma estrada principal que é moderadamente movimentada, e toda a teia de ruas que servem o interior da localidade estão praticamente desertas. É um sítio calmo, onde toda a gente se conhece. A maioria da população são idosos habituados à vida no campo ou na mata, onde ganhavam para comer. Nunca se confrontaram com a ideia de aparecer um cadáver severamente ferido e deixado para toda a gente ver. E agora, viam-se entrevistados pelos canais de notí­cias questionados acerca da sua opinião do assunto. A maioria respondia que tinha medo, ou que não sabia a que dizer, outros apontavam dedos a pessoas que não gostavam e outros não queriam falar com medo de represálias.

"Vá lá não vou fazer mal a velhos, que piada tinha? Se os quiser ver em sofrimento, ou aos gritos de dor basta ir a um lar. Não!" Aquela obra de arte, a Nicole, foi genial. Nunca me tinha sentido assim, uma mixórdia de sentimentos, nervosismo, adrenalina, medo, sentia um enorme prazer no que estava a fazer, no fim, quando a decidi matar, senti compaixão, queria dar-lhe uma morte rápida. Falhei redondamente, parece que cortar a jugular a alguém só lhe dá uma morte pior, talvez devesse ter sido uma pancada forte, ou algo que lhe atingisse diretamente o cérebro, dizem que é a morte mais rápida.

 

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Visão do Assassino - IV

por Luís Marcelino, em 10.09.17

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Uma semana depois da senhora Luz encontrar o corpo estendido sobre uma cama de rosas o interesse dos media ainda não tinha desvanecido. Continuavam a aparecer, principalmente na TV, fotografias que a Nicole tinha postado no facebook. Eram usadas para mostrar quão bela ela era, mas principalmente para chocar ainda mais o telespectador, não que choque mais por ela ser bonita, mas é quase inevitável surgir na mente da população a ideia de que ela era bonita demais para morrer assim. O facto de mostrarem fotos da Nicole no telejornal cria uma ligação entre o telespectador e a vitima, que acaba por aumentar a revolta. A revolta é bom para as audiências, as pessoas vão voltar a assistir às notícias todos os dias para saber se o assassino foi apanhado, e mesmo que não haja novidades, para a próxima poderá haver. Nunca houve. Conforme anunciado em primeira mão pelo JN, "As análises forenses nada permitiram concluir". A PJ pressionada pela população e pelos media prosseguia a investigação sem provas em que se apoiar.

 

Quanto a mim, revivi aquele pedaço de tempo em que brincava com ela, com o seu corpo, em que lhe riscava a pele com um prego, ou em que lhe espetava uma chave de fendas entre as costelas. Mas o momento que mais vezes procurei na memória foi aquele em que a deixei soltar gritos de dor e socorro, esse fora o momento que mais prazer me dera e aquele que mais vezes desejei repetir. Quero voltar a sentir aquilo. Os gritos estridentes que despejou quase transportavam a dor que sentia partilhando-a com quem os ouvia, eu quase conseguia sentir o que ela sentia, a dor, o medo, o desepero e a raiva. Quero voltar a sentir-me vivo daquela maneira. Reparem: vivemos todos os dias sem dar valor, sem nos sentirmos realmente vivos, a nossa vida é feita de hábitos e costumes que se repetem todos os dias. Mas de vez em quando acontece algo fora do comum que nos desperta sentimentos fortes, como quando morre um familiar, somos traídos por alguém que amamos ou até quando corremos perigo de vida, principalmente quando corremos perigo de vida, essas são alturas em que nos sentimos realmente vivos, são momentos em que sentimos com toda a intensidade. Foi o que os gritos da Nicole me transmitiram, uma sensação de vida. Algo que duas semanas depois só conseguia reviver através da memória.

Depressa cheguei à conclusão que não tinha de ser assim, a polícia não tinha a mais pequena razão para virar as suas atenções para mim, sim, eles sabiam que era alguém do sexo masculino, mas mais nada. Se tivesse o mesmo cuidado safar-me-ia de novo, decidi então que o mesmo método era o melhor, já tinha sido testado e resultara pelo que havia de resultar de novo. Passei dias a pensar num plano, verifiquei as horas de maré baixa para conseguir aproveitar as poças do rio, preparei a caserna onde estive com a Nicole para ser mais rápido quando chegasse com a nova convidada e escolhi a minha presa. Aprendi os seus horários, as suas relações e os seus segredos, aprendi mais do que precisava na verdade. Como fiz com a Nicole, persegui a minha nova musa durante mais de uma semana, esta era da terra, conhecia-a desde sempre mas não fazia parte do meu circulo mais próximo, era apenas uma conhecida, chamava-se Rita. Tinha cerca de 22 anos, vivia no Brejo e era linda, possuia uma silhueta que parecia esculpida em sonhos. Tinha peitos e ancas que gritavam ao olhar e uns olhos azuis tão profundos como o oceano. Era perfeita para continuar o meu trabalho.
Três semanas depois da Nicole, voltei à caça.

 

 

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A Joaninha e o Mendigo

por Luís Marcelino, em 26.04.17

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Lá estava aquele homem. Todos os dias sentado no banco do passeio em frente à casa da Joaninha, olhando as pombas que por ali paravam, alimentando-as ocasionalmente com o que sobrava da sandes que ia conseguindo comprar. Era um mendigo. Barba grisalha longa, cara enrugada pelos seus 70 anos, de altura média e de estrutura esguia. Vestia sempre um casaco longo e preto que parecia tão velho como quem o usava. Característica comum às roupas que usava por baixo.

Joana, ou Joaninha, como toda a gente teimava chamar-lhe era uma jovem de 14 anos, tão normal como qualquer jovem de 14 anos. Bem, tirando as fotos seminuas no insta, e as citações sobre amor, ou as indiretas aos ex-namorados de “relações” que duraram uma semana, e de posts no face a pedirem “mp” porque estão sozinhas, a serem grandes po…hmm hmm, ok. A Joana não fazia nada disso, a Joana era uma jovem inteligente. Todos os dias se cruzava com aquele mendigo, tantas vezes que começou a dizer-lhe bom dia, que evoluiu para um “Tudo bem?”. Até que sentiu vontade de falar com ele. Um Sábado de manhã, Joana levantou-se, tomou o pequeno-almoço, fez um pão com manteiga a mais e levou-o ao mendigo. Sentou-se ao seu lado e inventou uma conversa. Olhava com clareza para a cara do senhor pela primeira vez. Apesar da barba longa e das rugas, possuía um ar bastante amigável. Ela sentia-se confortável a falar com aquele estranho, ele era simpático, fácil de falar. Descobriu que o nome dele era José. A conversa desenrolava-se até chegar à pergunta…

_Porque vive na rua? – perguntou Joana com um ar desconfortável. O mendigo esboçou um sorriso e olhou para o chão.

_Não ias entender menina.

_O que o leva a pensar isso?

_Bem. Antes de vir para a rua tinha uma boa vida, herdei uma fortuna, nunca tive de trabalhar, tinha uma boa casa e um bom carro, e o mais importante de tudo, a minha esposa. Mas a vida era demasiado boa. Nada pode ser plenamente bom. A certa altura a minha mulher foi diagnosticada com doença terminal… faleceu um mês depois…

_Tchh, peço desculpa.

_Dei por mim sozinho, sem a minha musa, sem motivo para ser feliz. Ela era a minha verdadeira felicidade, eu morri com ela. Após a sua morte doei toda a minha fortuna, um morto não precisa de dinheiro. Vagueio desde então pela rua. Sou um externo da sociedade que a observa por fora.

– … - Joaninha permaneceu calada.

_Joana, o que é para ti a felicidade?

_Acho que nunca pensei nisso, mas acho que o que a maior parte das pessoas responderia seria ser rico, famoso, respeitado, ou as três.

_Mas para ti?

_Eu acho que para ser feliz gostava que os meus pais tivessem saúde e ter uma boa vida quando for adulta.

_Muito bem. A felicidade é algo muito pessoal, ou pelo menos deveria ser. Na verdade, é incutido às pessoas que a felicidade chegará quando se for rico, famoso ou respeitado. Lutar por isso com o propósito de ser feliz, é na minha opinião, um caminho vazio que em nada ajudará a atingir a verdadeira felicidade. Na minha opinião essa só pode ser atingida através de sentimentos fortes como o amor, a saudade e até a tristeza, sentimentos verdadeiramente humanos, vindos da nossa alma, sentidos com todo o coração, sentimentos que nos fazem sentir vivos. Só assim nos podemos sentir felizes.

_Realmente isto é um bocado difícil de perceber…

_De facto. Agora vivo na rua, perseguindo a minha própria felicidade que outrora esteve em minha posse e que continua a fugir-me. Os pombos são os meus amigos, é com eles que partilho o meu comer e a minha vida.

_Porque não procura ajuda? Você vive na rua!

_Foi a minha escolha. É aqui que me sinto bem. Livre como os pombos, sobrevivendo dia a dia, sentindo-me vivo… Joana, eu sei que não me conheces, mas ouve o conselho de um velho. Vive a vida como achares que és feliz, nunca deixes alguém dizer-te como o fazer. Ama-te a ti, só assim sentirás amor por outros. Lembra-te, a felicidade está nos sentimentos mais intensos, não no dinheiro ou na fama.

Então Joana olhou para o mendigo, acenou com a cabeça em forma de cumprimento, levantou-se silenciosa e foi-se embora. Não voltaria então a ver aquele homem.

 

 

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A Porta Debaixo Das Escadas | Mini Conto

por Luís Guardado, em 26.03.17

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Raro era o dia em que não ouvia em casa ou na escola a expressão "Luís, desce à Terra.". Esta expressão penso que deriva do facto de uma pessoa divagar no seu próprio pensamento e distrair-se totalmente da realidade. Existem também aqueles que divagam no espaço, que era o meu caso.
Tinha eu 8 anos quando me mudei para a minha quinta casa. Os meus pais gostavam de se mudar frequentemente, um traço que eu não partilhava, de todo, com eles. Era uma casa dividida em dois andares, os quais eram moradias separadas. A minha era a de baixo. Quando se olhava da rua só se conseguia ver um portão de ferro preto e o andar de cima da casa, que estava coberto de tijoleiras amarelas e brancas. O telhado era cor de vinho. Depois de entrar no portão havia umas escadas em pedra que davam acesso ao andar de baixo, ou seja, a minha casa. Do lado de fora do portão, havia ainda um outro portão mais à esuqerda do principal, que dava acesso a um pequeno espaço que existia debaixo das escadas de pedra. Eram uns 2 ou 3 degraus desde o portão até ao espaço debaixo das escadas. No fim do pequeno escadario tinha uma porta de madeira, redonda no topo e com dois ferros pretos atravessados, um em cima, e um em baixo. Estava entreaberta, mas não dava para perceber o que guardava. Como era curioso, no primeiro dia em que me mudei para a casa dediquei-me a explorar as redondezas. Foi quando descobri a porta no fim da escadaria. Passei o portão, desci as escadas, sempre com cuidado, não sabia se ia aparecer alguma coisa por detrás daquela porta. Continuei, e abri lentamente a velha porta. Fazia um barulho típico que a madeira faz quando está velha, aquele chiar. Naquele momento, tive medo.

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A Ordem dos Nove, Afonso

por Luís Guardado, em 11.03.17

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14 de setembro, 2012

 

Mais um ano. Hoje inicia-se mais um ano escolar. Mas não hoje. Hoje é aquele dia em que temos a reunião de apresentação, onde teoricamente conhecemos os colegas todos, onde ficamos a par do regulamento interno da escola, onde nos é dado o nosso horário para os próximos nove meses das nossas vidas. É aquele dia chato. No entanto eu nunca gostei de ver o copo meio vazio nestes dias. Acabei de me voltar a mudar para a minha terra natal, após três anos fora. Ainda tenho alguns conhecidos na cidade, e consigo contar pelos dedos o número de pessoas que podia chamar de amigos. Conscientemente, sei que tenho que passar, pelo menos, os próximos três anos da minha vida com este grupo de pessoas, portanto, sentei-me no canto da sala, a observar. As mesas da sala estão divididas em quatro filas, cada uma delas com quatro mesas de duas pessoas cada. É um total de trinta e dois lugares, mas nem metade da sala está preenchida. À minha frente vejo duas raparigas, uma pequena com cabelos encaracolados, e uma vestida com uma camisola de gola alta verde. À frente delas, um rapaz, que se prezava atleta. A fila que está ao meu lado direito está surpreendentemente vazia, fica mesmo de frente para a Diretora de Turma. Nas duas últimas filas, está concentrado aquele grupo que já se conhece, que já faziam parte da mesma turma no ano anterior. Sento que já existe alguma amizade entre eles, mas mesmo assim, vejo distância. Dentro deste grupo temos o grupo das raparigas que parecem ser estudiosas, e que tiram sempre as melhores notas da turma, temos o grupo dos rebeldes, que só gostam de fazer asneiras para impressionar os outros, temos o grupo dos ratos da informática, que muito provavelmente têm problemas de socialização, e depois havia um rapaz, sentado só, no canto oposto ao meu. Parecia solitário, mas ao mesmo tempo alegre por estar solitário. Rapidamente me apercebi que aquele grupo disfuncional ia dar trabalho, mas que ia a minha oportunidade para me voltar a inserir num ambiente seguro e amigável.

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